A revista ÉPOCA, que circula esta semana, ouviu militares que conhecem por dentro o funcionamento da máfia, que teria a participação também de oficiais.
<div align="justify">Passava pouco das 11 horas da Quarta-feira de Cinzas quando um tiro de pistola 9 milímetros ecoou no corredor do 3º andar do prédio do Comando do Exército, em plena Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Sobre o piso de madeira, caiu o corpo do subtenente José Ronaldo Amorim, 46 anos completados na semana anterior. Para a Polícia Civil do Distrito Federal, chamada minutos depois, não há dúvida: foi suicídio. O subtenente Amorim, como era conhecido, disparou contra a própria cabeça, com a arma oficial que usava em serviço.</div>
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<p>À primeira vista, poderia parecer mais um entre os recorrentes casos de suicídio nas fileiras do Exército. Mas não era. O subtenente Amorim respondia a um inquérito policial militar explosivo. A investigação, que corre em segredo, destina-se a mapear o funcionamento de uma máfia, com personagens de dentro e de fora do Exército, montada para desviar armas que deveriam estar bem protegidas nos depósitos da corporação.</p>
<p>As armas desviadas, em sua maioria, são aquelas recolhidas nas campanhas de desarmamento promovidas pelos poderes públicos. Por lei, elas devem ser entregues ao Exército para ser destruídas. O problema é que nem todas são inutilizadas. A máfia em atuação na caserna arquitetou um eficiente esquema para retirar armas dali e repassá-las para o mercado negro, em troca de dinheiro. É um desvio duplamente perigoso. As armas deveriam sair de circulação, contribuindo para a redução da violência. Mas acabam voltando para as ruas - e muitas delas vão para as mãos de traficantes de armas que abastecem o mundo do crime.</p>
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<p>A revista ÉPOCA, que circula esta semana, ouviu militares que conhecem por dentro o funcionamento da máfia, que teria a participação também de oficiais. Dentro do Exército, o esquema tem como endereço as seções do SFPC, sigla que denomina o Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados. Espalhadas por todo o país, essas seções têm a tarefa de orientar, controlar e fiscalizar desde a fabricação até o transporte de armas, munições e explosivos em geral - atribuições exclusivas do Exército.</p>
<p>O desvio se dá em duas frentes. Uma delas é a retirada, pura e simples, de armas e munições guardadas nos depósitos para onde são destinados os carregamentos de armas recolhidas nas campanhas de desarmamento. A outra se dá de maneira um pouco mais sofisticada. Antes de registrar em computador as armas que chegam ao setor, e que deveriam ser igualmente destruídas, os militares envolvidos simulam doações a supostos colecionadores, autorizados pelo próprio Exército. É uma maneira de fazer com que a arma volte a circular, inclusive com ares de legalidade. O colecionador pode repassar a arma, em seguida, a terceiros. Há casos em que os colecionadores que recebem as armas são militares. "O destino final dessas armas a gente sabe bem. Não precisa ir muito longe para descobrir como chegam armas para os traficantes nos morros do Rio de Janeiro", afirma um dos militares entrevistados por ÉPOCA.</p>
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<p>Há quase três décadas no Exército, o subtenente Amorim trabalhou durante dois anos no SFPC da 11ªRegião Militar, que tem sede em Brasília e jurisdição sobre Goiás, Tocantins e o Triângulo Mineiro, além do Distrito Federal. Seu envolvimento com o desvio de armas foi revelado durante uma inspeção interna feita pelo Exército em Goiânia, no ano passado. O subtenente recebera a informação de que, no SFPC goiano, havia um lote de armas entregue pela família de um capitão aposentado recém-falecido. Com a ajuda de um colega da seção, Amorim registrou em seu nome uma suposta doação das armas. Para isso, usou de uma das artimanhas do esquema: ele próprio tinha seu registro de colecionador. Constatada a fraude, o subtenente foi, em seguida, afastado do SFPC. Estava exercendo funções burocráticas na seção de saúde do Comando Militar do Planalto, que funciona no mesmo prédio do comando do Exército.</p>
<p><strong>"Ganhando dinheiro extra com o crime"</strong></p>
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<p>A descoberta do desvio originou a abertura de um inquérito policial militar. De pronto, a investigação passou a mirar não apenas no subtenente Amorim, mas também no colega de Goiás que lhe repassou as armas, o subtenente Piccoli. "É a tentação do dinheiro fácil", diz um general que acompanha o desenrolar da investigação. "O sujeito às vezes está endividado e vê uma oportunidade de ganhar um dinheiro extra cometendo esse tipo de crime." Parecia ser exatamente esse o caso do subte-nente Amorim. Ele acumulava dívidas na praça. Estava com o nome inscrito nos registros de cheques devolvidos por falta de fundos. A investigação interna do Exército mostrou que o esquema de desvio de armas lhe rendeu um complemento na renda. "Temos elementos que mostram que, só nos últimos meses, ele vendeu R$ 14 mil em armas desviadas", afirma o general. O soldo de um subtenente é de R$ 4.500 brutos.</p>
<p>Originário da arma de cavalaria e pernambucano de nascimento, o subtenente Amorim, ca-sado, pai de três filhos, carregava no uniforme o brevê de paraquedista, prova de que passou pelos piores testes de resistência física e psíquica da caserna. Mas a investigação se transformou num fardo pesado demais para ele, que passou a enfrentar um conflito pessoal, segundo o depoimento de amigos. Por um lado, Amorim já tinha percebido que o inquérito militar o havia empare-dado. Seu emprego no Exército estava a prêmio. Por outro, movido por um dever de lealdade, Amorim não queria delatar outros militares e civis envolvidos nem se submeter ao risco de enredar oficiais na investigação. Segundo pessoas próximas a ele, esse era o caminho que lhe restava caso quisesse evitar punições maiores. Dias antes de se suicidar, o subte-nente conversou sobre o assunto com amigos civis e militares. Mostrou documentos e cópias de e-mails que, em sua visão, poderiam ser seu resguardo. A alguns desses amigos, o subtenente entregou cópia dos papéis.</p>
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<div align="justify"><strong>General estaria abafando investigações</strong></div>
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<p>ÉPOCA teve acesso ao material. Entre os e-mails, há alguns que, além de explicitar a participação do subtenente no esquema, indicam nomes de outros envolvidos. Um dos interlocutores frequentes do subtenente é um colega de farda identificado como André Gama, que havia trabalhado no SFPC num passado recente. Nas mensagens, Gama demonstra conhecer bem o funcionamento do esquema. Em dezembro do ano passado, o subtenente Amorim escreveu ao amigo. "Estou passando por maus momentos", dizia, ao informar o amigo da existência da investigação. Na resposta, Gama sugeria que Amorim partisse para o contra-ataque. "Lembra do caso que [sic] a Polícia Federal apreendeu mais de 6 mil (seis mil) cartuchos com um estrangeiro e envolvia um coronel da reserva e um general?", escreveu ele. "O caso era para ser enviado para a auditoria militar etc., mas o general Davi não quis enviar", emendou.</p>
<p>A ideia era contra-atacar com o argumento de que, quando as irregularidades envolvem oficiais de alta patente, as investigações não prosseguem. O general Davi a que o militar se refere é Paulo Davi de Barros Lima, comandante da 11a Região Militar, a quem o subtenente estava subordinado. O episódio em questão se deu em 2007. Diz respeito à importação de munições, operação que também está submetida ao crivo do SFPC. Em nota, o Exército informou que o general Davi não levou o caso adiante porque a Polícia Federal teria concluído depois que não houve irregularidade na importação das munições.</p>
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<div align="justify">As mensagens também revelam ligações do esquema com empresas que vendem e transportam armamentos. Uma delas é a Kammel, uma casa de produtos para caça e pesca de Taguatinga, cidade-satélite de Brasília, que também vende armas e munições. Em tom de camaradagem, o subtenente trocava e-mails com o dono da empresa, Ismail Kamel Abdul Hak, que lhe repassava incumbências a serem resolvidas na seção de produtos controlados do Exército, como liberações para transporte de armamentos. "Não tive ligação espúria com quem quer que seja. Minha loja é autorizada pelo <font size="2">Exército. O Amorim era um amigo e era muito honesto", diz Hak. Epoca</font></div>