CONTO
Era uma vez dois corcundas...
(Adaptado do Folclore Popular)
Ricardo Sérgio - 02/09/2008

Dizem que havia por esses cafundós do sertão, em tempos que já se foram, dois compadres corcundas; um muito rico e o outro muito pobre. O corcunda pobre era alvo da zombaria do povo enquanto que o rico recebia todo o respeito.

A situação do compadre pobre ia de mal a pior, pois ele tirava o sustento da caça e ultimamente não tivera sorte na empreitada.

Ora, diz o povo que, certa vez, já findava dia, mas, a caça nem caso e o corcunda pobre não querendo voltar para casa de mãos vazias, resolveu dormir ali mesmo, no mato. Entrementes, já estava quase pegando no sono, quando ouviu uma cantoria ao longe e resolveu assuntar. Depois de muito capengar, chegou numa clareira cheia de luar, e pegou de espiar. Viu uma roda de gente esquisita, com as roupas revestidas de pedras preciosas que brilhavam ao luar. Velhos, rapazes, meninos, todos dançavam de mãos dadas, e cantavam o mesmo verso, sem alteração:

Segunda, Terça-feira,

Vai, vem!

Segunda, Terça-feira,

Vai, vem!

O corcunda pobre, diante daquela cena incomum, assustou-se: “Será possível, meu senhor?!” Sim, era tão certo como Deus é Deus. Então, o caboclo, tremendo de medo, foi esconder-se numa moita próxima e, ali ficou, assistindo aquela toada que era sempre à mesma. Passou às horas e o caçador foi se acostumando ao baile animado e acabou se animando. Como era metido a improvisador, não agüentou; entrou no meio da cantoria entoando:

Segunda, Terça-feira,

Vai, vem!

E quarta e quinta-feira,

Meu bem!

Imediatamente todos se calaram procurando quem havia quebrado os versos. Não teve espera, pegaram o corcunda e o levaram para o meio da roda. Um velho de barbicha branca então perguntou com voz delicada:

— Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?

— Fui eu, sim senhor!

— Quer vender o verso? - perguntou o velho.

— Não, senhor! Não vendo não, mas dou de presente porque gostei demais do baile animado.

O Velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.

— Pois bem - disse o Velho - uma mão lava a outra. Em troca do verso eu lhe tiro essa corcunda e nosso povo te dá um bornal novo!

Passou a mão nas costas do caçador e a corcunda sumiu. Deram-lhe um bornal novo e lhe disseram que só o abrisse quando o sol nascesse.

O compadre caçador despediu-se do velho e enveredou-se estrada afora. Assim que o sol nasceu abriu o bornal e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro.

O corcunda pobre tinha ficado rico, e, como tal, comprou uma casa com todos os móveis, comprou roupa nova e tudo o mais que necessitava. No domingo foi à missa. Na igreja encontrou o compadre rico, também corcunda. Este ficou aturdido, assombrado com a mudança. Mais espantado ficou quando o compadre, antes pobre e agora rico, contou tudo que aconteceu.

A ambição é o diabo, meu patrão. O corcunda rico, tomado de ganância, resolveu ficar ainda mais rico e, ao mesmo tempo, livrar-se da corcunda. Esperou uns dias e depois se largou no mato. Tanto fez que ouviu a cantoria e foi na direção da toada. E, como da outra vez, tava lá na clareira o povo esquisito dançando e cantando:

Segunda, Terça-feira,

Vai, vem!

Quarta e quinta-feira,

Meu bem!

O Corcunda rico não se conteve e foi logo berrando:

Sexta, Sábado e Domingo,

Também!

Calaram-se todos novamente. E, de uma feita, o povo esquisito voou para cima do improvisador atrevido. Levaram-no para o meio da roda onde estava o velho. Esse gritou furioso:

— Quem mandou se meter onde não é chamado seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o filho de Deus; sábado, dia em que morreu o filho do pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!

O velho passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a corcunda do compadre pobre. Depois deram uma carreira no homem, que ele entrou por uma porta e saiu por outra. A ambição é o diabo, meu patrão.

E assim ele viveu o resto da sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma na frente e outra atrás, para não ser ambicioso.

Quem ouviu e não aprendeu, bom exemplo não colheu.

Pois, não é? ®Sérgio.

Ricardo Sérgio
Publicado no Recanto das Letras em 01/09/2008

Facebook
Publicidade