Piauí Ecologia era o codinome de Antônio José da Silva, um brasileiro nato, nordestino, negro, piauiense natural da cidade de Picos, lutador das boas causas, indignado, consciente, artista, pensador, guerreiro, sonhador. Em sua cidade natal era conhecido também como “Antônio Mago”.
Piauí faleceu no início da manhã deste sábado (29/8/2020), no hospital Getúlio Vargas (HGV) em Teresina (PI). As causas de sua morte foram cirrose hepática e hepatite, agravadas por uma anemia profunda, mas aqui estou para falar de sua vida em primeiro lugar.
Com seus longos dreads que simbolizavam as raízes de sua resistência, carregava em seu codinome a alcunha “Ecologia” por ser um ferrenho defensor da natureza, entre várias outras causas importantes – a maior delas foi a luta diária contra a opressão que ele mesmo sentiu na pele durante toda sua vida, mas sempre ressaltava que a luta era por todos, e não somente por um.
Durante muitos anos, Piauí, que era artesão de rua, ficava ali no MASP, na Avenida Paulista, em São Paulo, vendendo seus trampos e se relacionando com a cidade e as pessoas da cidade. Muitos que ali passavam recebiam uma mensagem positiva e consciente desse cara que era uma luz de sabedoria para a geração atual.
Fiz e faço parte da luta social há muitos anos, fui repórter de alguns veículos da chamada mídia alternativa e entrevistei o Piauí algumas vezes, fazia questão de colocá-lo em frente às câmeras porque ele sempre foi aquele cara que tinha muito o que falar, queria ter sua voz amplificada, mas não encontrava espaço em mídias convencionais.
Ele tinha um brilho no olhar de quem estava nesse planeta para impulsionar mudanças de forma genuína, sentimento latente e verdadeiro, e isso sempre me emocionou. Sentimos cada vez mais falta disso nos tempos atuais.
Nas lutas de junho de 2013, as chamadas “Jornadas de Junho”, impulsionadas pelo Movimento Passe Livre e pelos punks anarquistas, Piauí foi figurinha carimbada: estava sempre lá, junto do povo, nas ruas, na luta, levando em frente uma mensagem de esperança e de luta, algo que tanto necessitamos nesse momento.
Ele também fazia esculturas com bitucas de cigarro que encontrava pelo chão, era sua forma de passar a mensagem para que as pessoas largassem o cigarro, vício que o acompanhou durante parte de sua vida, mas que havia abandonado. Um cara inquieto e não conformista, um pensador que se dava o direito e oportunidade de mudar, um cara que buscava a liberdade a todo instante.
Há alguns anos Piauí resolveu voltar à sua cidade natal, Picos, no Piauí, para estabelecer moradia, e a forma que foi até lá fez jus às suas origens de “maluco de BR”: pegou sua magrela e pedalou 2511 km, dormindo em postos de gasolina e documentando em vídeos e em fotos que eram postadas regularmente em suas redes sociais. Encontros especiais com outros viajantes, indignações com a desigualdade do país, um lindo pé de fruta encontrado no caminho, tudo isso e mais um pouco fazia parte de seus relatos. Um cara que sabia aproveitar a vida e dar valor às coisas simples, aos verdadeiros tesouros da existência.
Chegando lá Piauí fez uma vaquinha na internet para quem pudesse ajudá-lo a levantar sua moradia, conseguiu uma parte do dinheiro e foi construindo com suas próprias mãos seu teto, guerreiro que não descansava um só dia em prol de seus sonhos.
De Picos, Piauí postava em suas redes sociais fotos da série de árvores que ele havia plantado na praça da cidade há muitos anos e que hoje são lindas e majestosas. Também se manifestava e era um ferrenho crítico aos políticos da cidade, falando sobre o descaso das autoridades públicas perante uma série de situações.
Por esses dias Piauí postou que estava no hospital e disse que os médicos lhe diagnosticaram com cirrose hepática. Mandei uma mensagem de força e disse pra ele ficar bom logo que quando possível eu o visitaria no Piauí, e eu falava sério, pois meu pai também é piauiense e volta e meia estou na região… infelizmente não deu tempo de fazer essa visita.
Após tantos relatos de mortes nesses tempos difíceis, posso dizer que a notícia do falecimento do Piauí me pegou de jeito: estou realmente emocionado, com lágrimas nos olhos ao escrever esse texto, pois o que estamos passando nesse país não é fácil, e Piauí representava aquele guerreiro de alguma forma anônimo, mas muito conhecido e querido nas ruas, que sempre passava a mensagem que era urgente lutar pelo que acreditamos, que não podemos nos curvar ante à tantas injustiças. Piauí representa cada um de nós que se indigna sinceramente com tantos absurdos, que exige mudanças e efetivamente dedica sua vida às causas que acredita.
Hoje de manhã quando fiquei sabendo de sua morte fiz um post em meu Facebook e foi notável o quanto em pouco tempo muita gente interagiu, compartilhou, comentou o quanto se inspirava nele, um cara que era realmente querido pelas pessoas.
Em um vídeo gravado nas manifestações de 2013, Piauí dizia:
“É, sou do povo, é revolução, a gente precisa do povo, é um por todos e todos por um, nós vamos lutar não só por causa de 20 centavos, queremos um Brasil pra todos, educação, saúde, moradia, eu trabalho com artesanato, a polícia tem que parar de perseguir os artesãos, porque arte é cultura, o artista não pode estar sendo tratado como bandido, porque bandidos são esse políticos que estão roubando o nosso país”. E levantou um cartaz com os seguintes dizeres: “Quando injustiça se torna rotina, revolução se torna dever”.
Desejo que o legado do Piauí permaneça entre nós, que entendamos que não necessitamos de pompa ou de fama, mas sim de hombridade, dignidade e coragem pra continuar e nunca nos curvarmos perante tantas opressões. Descanse com as estrelas, irmão, sua história não foi e não será em vão. E que o amor e a justiça prevaleçam entre nós.
“Até quando vão matar nossos profetas Enquanto nós permanecemos de lado, olhando?”
Robert Nesta Marley – “Redemption Song”
Ponte.org/ CarlosCarlos